Sobreviventes das explosões atômicas que devastaram Hiroshima e Nagasaki têm direito a atendimento subsidiado pelo governo japonês no Hospital Santa Cruz
O dia mais curto da história do Japão terminou pontualmente às 8h15 da manhã. Em 6 de agosto de 1945, 60 quilos de urânio, equivalentes a 13 mil toneladas de explosivo, estouraram a 580 metros do solo de Hiroshima, emitindo uma luz mortífera que em questão de segundos cobriu toda a cidade. No chão, a temperatura atingiu 5 mil graus Celsius. No céu, uma nuvem em forma de cogumelo se elevou até a estratosfera, alcançando 17 mil metros de altura. Em menos de 2 horas, línguas de fogo e ventos de 1.500 quilômetros por hora varreram a cidade inteira, levando consigo tudo o que estivesse de pé, de casas a pessoas. Enquanto isso, uma chuva negra derramava doses maciças de poeira radioativa sobre a população. Três dias depois, uma nova bomba, agora à base de plutônio, explodiria sobre a cidade de Nagasaki, uma das maiores da ilha de Kyushu.
Somadas, as duas bombas mataram entre 130 e 220 mil pessoas – os números são imprecisos, pela escassez de dados da época, e nem de longe definitivos. Outros milhares morreram nos anos seguintes, em decorrência dos ferimentos e dos efeitos da radiação que, ainda hoje, sete décadas depois, se manifesta nos sobreviventes na forma de cânceres e distúrbios hormonais.
O governo japonês passou a oferecer assistência médica aos chamados hibakushas – pessoas afetadas pela explosão, em japonês – 11 anos depois das bombas, e caso algum sobrevivente vivesse em outro país, era necessário viajar até lá para obter o acompanhamento a que tinha direito. Assim foi até 2004, quando um acordo com o Hospital Santa Cruz permitiu que as vítimas das bombas fossem atendidas no Brasil. Antes, era comum que os hibakushas que aqui viviam fossem todo ano ao Japão para realizar o check-up periódico oferecido pelo governo (que pagava inclusive a passagem), mas, com o avanço da idade, cruzar o mundo em um voo de 30 horas foi se tornando cada vez mais complicado. A média atual de idade dos sobreviventes é de 80 anos. O mais velho, hoje, tem 102 anos.
Segundo o Dr. Julio Yamano, diretor técnico do Hospital Santa Cruz, essa iniciativa nada mais é do que a continuidade de uma das vocações iniciais da Instituição, que é o apoio humanitário à comunidade nikkei no Brasil. “Desde sua fundação, o Hospital Santa Cruz tem o compromisso de prestar assistência médica aos imigrantes japoneses e seus descendentes. Essa ação com os hibakushas é também uma forma de manter viva essa missão.” E um parceiro importante nesse propósito, ressalta Dr. Yamano, é a Associação Hibakusha Brasil pela Paz, entidade sediada no bairro do Jabaquara que tem tido o papel fundamental de manter unida a comunidade de sobreviventes.
No início dessa iniciativa, há 15 anos, eram 130 as vítimas das bombas atômicas que viviam no Brasil. Hoje são 80, pequena fração de um grupo que, no mundo, segundo o governo japonês, abrange 145 mil pessoas – a memória viva de um dos mais nefastos crimes contra a humanidade. Nem todos moram em São Paulo, mas os que aqui estão (cerca da metade) vêm todo ano ao Hospital Santa Cruz, sempre por volta de outubro, para um dia de exames que inclui análises laboratoriais, raios X, endoscopia e ultrassonografia, tal como feito no Japão com as outras vítimas. Depois, retornam para consulta com os médicos do corpo clínico do Hospital. A cada dois anos, o check-up é acompanhado de perto por médicos japoneses. Nos anos em que eles não estão presentes, os exames são feitos por médicos do Hospital Santa Cruz especialmente treinados no Japão para o atendimento aos hibakushas, graças a uma parceria com o governo japonês que já proporcionou a ida de 25 profissionais da Instituição para um intercâmbio em hospitais de Hiroshima e Nagasaki.
Neste ano, uma novidade: desde março, os sobreviventes da bomba atômica que vivem no Brasil podem também usufruir de atendimento médico no Hospital Santa Cruz. A assistência sem custo é um direito de todo hibakusha garantido pelo governo japonês, mas, tal como acontecia com o check-up anual, o benefício exigia que as vítimas fossem até o Japão para serem atendidas. Elas também podiam solicitar reembolso, o que em geral tomava bastante tempo. Mais uma vez, a idade avançada foi tornando difícil essas idas à terra natal, e, por isso, hoje um hibakusha pode receber atendimento ou tratamento no Hospital Santa Cruz sem pagar nada. Todos os custos são cobertos pelo governo japonês. “Esse é um direito das vítimas da bomba atômica”, diz Yuli Fujimura, coordenadora do check-up do Hospital Santa Cruz. “E as que estão aqui no Brasil se sentiram muito recompensadas pelo Japão ter reconhecido esse direito.”
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