Há 80 anos a serviço da saúde

Dos primeiros atendimentos aos imigrantes japoneses ao reconhecimento como um dos melhores hospitais de São Paulo, confira a trajetória do Hospital Santa Cruz 

No início do século 20, era alarmante a situação dos imigrantes japoneses nas lavouras de café do interior de São Paulo. Trabalhavam muitas horas por dia sob o sol, sem alimentação adequada (pela falta de ingredientes aos quais estavam habituados) e ainda sujeitos à malária e a outras doenças tropicais. Como viviam em lugares isolados, não havia assistência médica próxima. E, quando havia, existia a barreira do idioma: muitas vezes, a qualidade do atendimento era comprometida pela dificuldade de comunicação entre os médicos e os japoneses. 

Como forma de ajudá-los, membros da comunidade nikkei da capital paulista fundaram, em 1926, a Sociedade Japonesa de Beneficência no Brasil – Dojinkai, menos de duas décadas após a chegada do primeiro navio de imigrantes do Japão, o Kasato Maru, em 1908. Seu papel na saúde dessas pessoas foi determinante: por muitos anos, a Sociedade prestou assistência aos recém-chegados, forneceu informações básicas sobre saúde, abriu postos de atendimento no interior e enviou médicos para tratar os lavradores. A criação do Hospital Santa Cruz foi o ponto culminante dessa iniciativa. 

No mesmo ano de sua fundação, a Dojinkai havia comprado um terreno de 14 mil metros quadrados na Vila Mariana, com frente para a rua Santa Cruz. E foi ali, em 1933, que foi inaugurada a pedra fundamental do chamado Nihon Biyoin (Hospital Japonês), cuja construção motivou uma grande campanha de arrecadação de fundos que envolveu toda a comunidade japonesa, dentro e fora do Brasil, incluindo empresas, pessoas físicas e órgãos governamentais. O próprio imperador Hiroito fez uma doação pessoal de 50 mil ienes.

A campanha levantou quase 1 milhão de ienes (equivalente a cerca de 5 mil contos de réis, na moeda da época), utilizados na construção daquele que seria um dos mais modernos hospitais da América Latina em termos de concepção, projeto e infraestrutura. Para orgulho dos envolvidos nesse movimento em prol da saúde e da integração entre o Japão e o Brasil, em 29 de abril de 1939, dia do aniversário do imperador, o Hospital Santa Cruz foi inaugurado. 

Era, sim, o tão sonhado “Hospital Japonês”, mas nem de longe exclusivo à comunidade japonesa. Pelo contrário: desde o início, o Hospital Santa Cruz atendeu cidadãos de todas as nacionalidades, atraídos pela excelência das instalações e dos serviços. Médicos brasileiros consagrados também se sentiram cativados, sobretudo após a inauguração do centro cirúrgico, em 1940, onde passaram a operar alguns dos mais importantes nomes da medicina na época, entre eles Benedito Montenegro (então futuro diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), Euryclides de Jesus Zerbini (que realizou o primeiro transplante de coração no Brasil) e Henrique Mélega (um dos pioneiros da oncologia no país). A eles, somavam-se os mais prestigiados médicos vindos do Japão, como Shizuo Hosoe, Yoshinobu Takeda e Sentaro Takaoka. 

A entrada oficial do Brasil na Segunda Guerra Mundial, porém, interferiu no futuro do Hospital Santa Cruz. Em janeiro de 1942, o governo brasileiro rompeu as relações diplomáticas com os países do Eixo, dando início a uma série de atos hostis aos alemães, italianos e japoneses que aqui viviam. Escolas foram fechadas, pessoas foram presas, os idiomas foram proibidos de serem falados e, no caso do Hospital Santa Cruz, o governo federal destituiu a diretoria de origem japonesa e instaurou uma administração interventora, que perduraria até 1944. 

A guerra acabaria no ano seguinte, mas a comunidade nikkei no Brasil, após tanta perseguição, encontrava-se tão desarticulada, que, naquele momento, já não tinha mais condições de retomar a gestão do Hospital. Os médicos brasileiros que assumiram a diretoria, porém, sabiam da importância da Instituição para esses cidadãos, de modo que o Hospital Santa Cruz continuou sendo um significativo centro de referência para os japoneses e seus descendentes, sobretudo porque foram mantidos no quadro clínico muitos médicos que dominavam o idioma, além do know-how japonês, para continuar oferecendo um serviço hospitalar de qualidade a essa parcela da população. 

Houve avanços também nessa época. Em 1945, criou-se ali uma importante Escola de Enfermagem, a cargo das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria. Em 1947, surgiu a Primeira Clínica de Tumores, um dos mais desenvolvidos centros de tratamento do câncer na época – à sua frente, o Dr. Antônio Prudente, que depois fundaria o Hospital A. C. Camargo. O médico foi também um dos pioneiros da cirurgia plástica (no caso, para reparar os tecidos após a retirada de um tumor), área em que o Hospital Santa Cruz acabou se destacando no cenário nacional – a ponto de, em 1985, por iniciativa do Dr. José Marcos Mélega, ser criado o Instituto de Cirurgia Plástica Santa Cruz, um dos mais relevantes centros de formação de especialistas nesse campo. Outro marco desse período foi o início, em 1977, do Programa de Residência Médica. O Hospital Santa Cruz foi uma das primeiras instituições particulares do país a exercer esse programa com aprovação do Ministério da Educação. 

No final dos anos 1980, cresceu entre os nikkeis de São Paulo o desejo de reintegrar o Hospital Santa Cruz à comunidade – não apenas como frequentadora, mas também como gestora e tomadora de decisões. O primeiro passo foi a criação de um abaixo-assinado: 700 mil nomes manifestaram apoio à causa, um fator determinante para que o governo federal, em 1990, firmasse um acordo em que assegurava a inclusão de japoneses e descendentes na coadministração do Hospital. Em 1993, deu-se início a uma campanha de arrecadação de fundos destinada a reformar e modernizar o Hospital Santa Cruz, que passara muitos anos sem aprimorar o parque tecnológico e as instalações.

Assim como ocorrera na época da inauguração do Hospital, a campanha mobilizou toda a comunidade, envolvendo tanto pessoas físicas quanto órgãos públicos e empresas japonesas. Disso resultaram seis anos de intensas transformações na infraestrutura e nos serviços do Hospital Santa Cruz. A começar pela reforma da UTI, que em 1994 passou de seis leitos para 12. Em 1995, instalou-se o primeiro gerador. Em 1996, a chegada de um novo equipamento para cirurgias oftalmológicas a laser multiplicou o número de operações: de 4 mil para 22 mil em 1999, celebrando o início de uma nova fase como centro de excelência em oftalmologia. Muitos aparelhos modernos, aliás, foram introduzidos nessa época – entre eles, os de tomografia, mamografia e angiografia –, alguns doados por intermédio da Agência de Cooperação Internacional do Japão (Jica). Foi nos anos 1990 que também começaram os atendimentos assistenciais às entidades: Kibô-no-Iê, Kodomo-no-Sono, Ikoi-no-Sono e Congregação das Irmãs de Caridade de Jesus (Caritas). Retomava-se, ali, a vocação beneficente dos primeiros anos. 

O Hospital Santa Cruz, assim, entrou no século 21 completamente transformado, em grande medida muito diferente daquele de quando foi devolvido à comunidade nikkei após o sucesso do Movimento Cívico pela Reintegração, quase uma década antes. O processo, é claro, não parou aí: nos primeiros anos do século, foram introduzidos o serviço de polissonografia, o atendimento emergencial 24 horas, as cirurgias bariátricas e os transplantes de medula óssea, entre outras novidades. O número de leitos na UTI subiu para 30 e as especialidades aumentaram para 43 nos consultórios da Instituição. O reconhecimento pelos esforços veio direto do Japão: em 2014, o Hospital Santa Cruz recebeu a visita da primeira-dama, Akie Abe, esposa do primeiro-ministro, Shinzo Abe; no ano seguinte, foi o então príncipe herdeiro, Akishino, e sua esposa, a princesa Kiko, que estiveram aqui.  

Em 2016, o Hospital Santa Cruz tornou-se o primeiro do país a implantar, junto com a própria Toyota, o TPS, um sistema de produção desenvolvido pela montadora focado no aumento da eficiência, da qualidade e da agilidade no atendimento. Para os pacientes, isso passou a ter reflexo na redução do tempo de espera e dos deslocamentos pelas dependências do Hospital, além do aumento na segurança. Nesse mesmo ano, o Hospital ofereceu suporte médico-hospitalar a turistas japoneses durante os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, atendendo ao chamado do governo japonês por apoio, e ainda iniciou uma série de parcerias para troca de conhecimento científico com as universidades japonesas de Osaka, Tsukuba e Kyushu. 

Duas décadas de empenho (a contar da reintegração do Hospital Santa Cruz à comunidade nikkei) culminaram com a acreditação, em 2018, do ONA II, certificado recebido como reconhecimento pela segurança e qualidade dos processos assistenciais. E é com essa chancela que o Hospital Santa Cruz chega aos 80 anos de vida, e, diga-se de passagem, cheio de energia e de novidades. A começar pelos investimentos que estão sendo feitos neste ano em cirurgias minimamente invasivas e em robótica hospitalar: um salto de tecnologia e inovação que aponta diretamente para o futuro. 

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